Coisas, causos, histórias e estórias que vi, vivi ou de que ouvi falar. Fatos engraçados e tristes, verídicos e inventados, hábitos, lugares, pessoas, coisas e acontecimentos que marcaram a minha vida e a de muitas pessoas.
Lá pelo fim dos anos 80, quando a Luciana Vendraminni era só uma adolescente causando furor por onde passava, eu tinha uma namorada que gostava de ir a lugares digamos, "badalados", com glamour. Num sábado à noite, a garota decidiu que iríamos à Zoom, uma discoteca "badalada" na época, originária de São Paulo, mas com sua "filial" em Santos. E lá fomos à Zoom. Ficava na praça da Independência, bem no meio do Gonzaga. Preciso antes dizer que sempre fui averso aos modismos musicais de todas as épocas. Sabe aquela frase "Hay gobierno, soy contra!"? Pois então, algo assim, "Hay musica da moda, soy contra!". Mas o "amor" faz dessas coisas. E lá fui eu à tal discoteca, sabendo de antemão que aquilo seria um tédio para mim. Bebes e bebes para lá e para cá, à meia-noite em ponto, um som ensurdecedor invadiu o recinto, com sinos tocando, uma seção de metais gritando, um êxtase. Eu nunca havia ouvido algo daquela magnitude (e naquele volume). Até então conhecia e gostava de música clássica, mas estava francamente entusiasmado pelo rock "new wave, e pelo jazz principalmente.
De repente, uma caixa clara começa a tocar um som marcial, militar, tudo acelera, freneticamente até o apogeu. Era a abertura da danceteria, coisa corriqueira para quem frequentava aquela casa. Para mim, era um som maravilhoso como eu nunca houvera escutado. Quando consegui recuperar o fôlego e a surpresa, ainda no meio dos repiques da caixa clara, perguntei à garota: "Nossa, de quem é isso?". Com uma feição pedante, admirada por minha ignorância, disse soberbamente: "Isso é Mozart".
Nessa época o filme "Amadeus" estourava nas bilheterias, e não pude deixar de assistir, e assistir, e assistir. O filme trata de outro assunto, usando apenas os dois compositores como personagens de algo mais profundo, a inveja e o gênio. Veja ao lado um trechinho, não aconteceu, mas certamente os dois , Salieri e Mozart eram assim, com esse espírito. Apaixonei-me por sua música (de Mozart), comprei um violino, contratei aulas com a melhor professora de Santos, Dona Marina Agapito. O autor de algo como aquilo que ouvira na boate, sua vida, seu jeito estúpido e imbecil paralelo À sua genialidade impressionante, grudou meus ouvidos a tudo o que consegui comprar a respeito. Minha discoteca, sempre variada e grande, ganhou um elevado número de lp´s com o que havia da Mozartiana à disposição nas melhores e nas piores casas do ramo. Livros, concertos, documentários, o que surgisse eu devorava. E claro, fui descobrindo a ficção do filme e a realidade da vida do compositor, que fascinou-me ainda mais. Para quem não viu no vídeo acima, a música em questão, originária desta paixão, deste amor que conservo até hoje, era o finale da "Abertura 1812" de Tchaikovsky... Não fica de todo ruim, pois Piotr Tchaikovsky era chamado o "novo Mozart", por sua excelência como compositor e pianista. Não há o que discutir. Mas quem ficou mesmo, com lugar acima dos demais, foi Wolfgang Mozart, de quem pretendo falar muitas vezes por aqui. De tantas obras magistrais, perfeitas, deixo para que apreciem e fiquem um pouco curiosos a respeito do título da obra e das suas implicações, a "Maurerische Trauermusik KV 477" ou, traduzido, "Música do funeral maçônico, Kv.K77". Mozart era maçom? Sim, e falaremos mais disso em outra oportunidade. Uma de minhas preferidas, por sua perfeição, simplicidade e profundidade. Como disse um maestro, "Beethoven atinge o céu em muitas obras, mas Mozart - vem de lá!".
No 1º da Abril de 1964, e não foi mentira, aconteceu o golpe de 1964. 26 dias depois, na mesma leva que me trouxe, do que
eu me lembro, vieram Dinho Ouro Preto e uma recepcionista de um motel
em Santos, que sempre olhava pra minha identidade e dizia: "nossa,
nascemos no mesmo dia".
Não
me lembro de muita coisa desses primeiros anos, meus pais não eram
politicamente ativos, embora meu pai em particular fosse dado a
leitura diária de jornais e acompanhava com muito interesse o
andamento dos acontecimentos. Liberal até certo ponto, com
tendências à direita, até certo ponto. Mas não ativista, ou
engajado em nada publicamente pró ou contra
alguma coisa.
Eu
não tinha a mínima noção do que estava acontecendo. Sempre fui
uma criança ingênua, com um pé na lua.
Lembro que não podia ver um soldado que
dava "tchau", adorava ver tanque de guerra e carro de
combate na rua, achava o verde-oliva muito bonito, não perdia um 7
de setembro. Mas era coisa de criança, não tinha mesmo ideia do
que aquilo representava e nem de que forma
isso influía no meu cotidiano ou das outras pessoas.
É
interessante, pois a televisão e o rádio, os jornais, não
mostravam a realidade, se situações que
significavam alguma ameaça geopolítica
eram divulgadas, eram sempre em algum outro lugar do planeta, e
sempre contra o herói norte-americano. Por estas plagas, tudo às
mil maravilhas. "este é um país que vai pra frente" era
uma musiquinha que tocava pra tudo quanto é lado, ou as tristes
propagandas pró-regime da dupla Dom e Ravel. Lógico que eu cantava
essas besteiras com todo o fôlego. Na
escola havia hasteamento da bandeira, com
canto do Hino Nacional Brasileiro, mão direita no peito e
tal."Brasil, ame-o ou deixe-o".
Lembro-me
que o silêncio imperava em todo canto. Meu pai tinha um barzinho no
bairro para o qual nos mudáramos. Nas conversas entre ele e alguns
mais íntimos, eu, lá debaixo (eu sempre estava por perto) percebia
que falavam de política, das artimanhas da ARENA e dos percalços do
MDB. Bastava alguém não conhecido surgir, ou mesmo ser avistado
mais à distância, a conversa tomava outro rumo, virava futebol,
gozação, qualquer coisa.
uma C-14 da polícia civil
E
como tinha gente mal-encarada e desconhecida que aparecia a qualquer
hora e qualquer momento, e sumia do mesmo jeito, olhando tudo e
todos. Havia o esquadrão da morte, que sumia com as pessoas,
pretensamente bandidos, mas a rigor, qualquer um. Lembro de uma
madrugada em que uma "C-14" ,o camburão da época; parou
na esquina de casa, pessoas desceram, conversa ríspida, alguém
jogado no compartimento traseiro, portas batendo fortemente e
arrancada. Nunca soube do que se tratou, quem foi a vítima, mas
penso nisso até hoje.
Obras
gigantescas, um país que crescia para todos os
lados, sob todos os aspectos. Essa
era a tônica de tudo o que o governo permitia e fazia divulgar. E
assim a vida ia seguindo, no faz de conta. Gente protestando, gente
sumindo, o sumiço e a notícia do sumiço
sumindo também. A insatisfação guardada e crescente num grande
parcela do povo, mas tudo calado, confessado a portas muito bem
fechadas, pois se poderia a qualquer momento, sem prévio aviso ser
abduzido pelo SNI.
Generais
sucederam-se, as coisas foram se abrandando até a eleição indireta
para presidente, onde um civil voltaria novamente, ao poder, Tancredo
Neves, que em vez disso resolveu voltar para o invisível, deixando a
bola no pé do José Sarney.
Era
interessante ver como a resistência fazia das suas para bater no
regime, como quem não quer nada. Chico Buarque principalmente.
Cada frase tinha um
duplo
sentido, parecia uma canção
de amor e era um tapa na cara do regime, uns desaforos, uma
provocação. Eu só consegui ouvir "pra não dizer que não
falei das flores" na minha adolescência.
Lembro que foi uma festa quando tocou em uma emissora de FM,
inteirinha. "Geni e o Zepelim"
também. Aqui e ali apareciam uns palavrões em algumas músicas,
coisa de criança comparado com o que se ouve hoje.
E
a TV?
Tudo
comportadinho, seguindo o figurino, não se fala de nada impróprio -
entenda-se, contra o governo. Se fizesse o contrário, tanto melhor.
Estão aí Globo e SBT para confirmar essa prática. A Globo tem 48
anos e o gole, como eu, 49. O jornal O Globo foi um
apoiador de peso dos militares. E lembro bem do Sílvio Santos
sempre falando favoravelmente dos generais, das obras do governo,
pondo filminhos sobre o que o General presidente
da vez fez naquela semana , sempre tem um oportunista, seja qual for
a oportunidade.
Essa
prosa toda para chegar ao que vimos ultimamente pelo país. A
garotada quebrando o pau -e quebrando é um verbo levado a sério,
palavra de ordem- por causa de vinte ou trinta centavos de aumento na tarifa de
ônibus, e depois por qualquer coisa, algumas vezes deu pra perceber
que era por nenhuma coisa, ou por uma coisa genérica como "pelos
meus direitos, não te interessa saber
quais são".
Não
é uma crítica, acho isso muito válido, é sinal de maturidade, de
crescimento, mesmo quando os tais oportunistas
se infiltram e tiram o seu proveito. Faço apenas
comparar com o que eram os protestos no período da ditadura, com era
difícil reclamar de alguma coisa, expressar uma ideia ou uma
contrariedade mais do que difícil, muito arriscado, podia custar a
vida.
E
essa garotada cresceu sem saber o que seus
pais, e mais provavelmente seus avós - já que tem muito pai e mãe
já crescido dentro da democracia- passavam,
o cala-boca constante que pairava no ar. E como se
pode falar sobre o que bem entender hoje, assumindo
claro, a responsabilidade sobre o que falou, mas tendo a LIBERDADE de
fazê-lo, com máscara, sem máscara.
Acho
que falta apenas canalizar isso, educar-se
politicamente, aprender que política não é algo para benefício
próprio (isso é herança do regime, dos
dedos-duros, dos caçadores de recompensa,
que como no tempo da caça às bruxas, deduravam quem queriam tirar
do caminho, bruxa ou não).
Descobrir
que o bem comum é algo legal. O que é bom pra mim e para os que
vivem no mesmo lugar que eu? Vou botar a boca no trombone por isso.
Entender que gabinete público não é lugar de troca favores, venda
de votos e apoios. Que a rua é onde a voz é mais ouvida, mas que o
que é destruído por vandalismo é igual a aceso de loucura dentro
da própria casa.
Saber
como demorou e foi difícil reconquistar essa possibilidade
de poder falar o que quiser e onde quiser deveria ser matéria
curricular no ensino oficial e nas
conversas entre pais e filhos, para aprendermos a valorizar e
aprimorar essa capacidade, e reivindicarmos a vida que nossos
impostos nos faz merecedores.