No 1º da Abril de 1964, e não foi mentira, aconteceu o golpe de 1964. 26 dias depois, na mesma leva que me trouxe, do que eu me lembro, vieram Dinho Ouro Preto e uma recepcionista de um motel em Santos, que sempre olhava pra minha identidade e dizia: "nossa, nascemos no mesmo dia".
Não
me lembro de muita coisa desses primeiros anos, meus pais não eram
politicamente ativos, embora meu pai em particular fosse dado a
leitura diária de jornais e acompanhava com muito interesse o
andamento dos acontecimentos. Liberal até certo ponto, com
tendências à direita, até certo ponto. Mas não ativista, ou
engajado em nada publicamente pró ou contra
alguma coisa.
Eu não tinha a mínima noção do que estava acontecendo. Sempre fui uma criança ingênua, com um pé na lua. Lembro que não podia ver um soldado que dava "tchau", adorava ver tanque de guerra e carro de combate na rua, achava o verde-oliva muito bonito, não perdia um 7 de setembro. Mas era coisa de criança, não tinha mesmo ideia do que aquilo representava e nem de que forma isso influía no meu cotidiano ou das outras pessoas.
É interessante, pois a televisão e o rádio, os jornais, não mostravam a realidade, se situações que significavam alguma ameaça geopolítica eram divulgadas, eram sempre em algum outro lugar do planeta, e sempre contra o herói norte-americano. Por estas plagas, tudo às mil maravilhas. "este é um país que vai pra frente" era uma musiquinha que tocava pra tudo quanto é lado, ou as tristes propagandas pró-regime da dupla Dom e Ravel. Lógico que eu cantava essas besteiras com todo o fôlego.
Na escola havia hasteamento da bandeira, com canto do Hino Nacional Brasileiro, mão direita no peito e tal."Brasil, ame-o ou deixe-o".
Lembro-me
que o silêncio imperava em todo canto. Meu pai tinha um barzinho no
bairro para o qual nos mudáramos. Nas conversas entre ele e alguns
mais íntimos, eu, lá debaixo (eu sempre estava por perto) percebia
que falavam de política, das artimanhas da ARENA e dos percalços do
MDB. Bastava alguém não conhecido surgir, ou mesmo ser avistado
mais à distância, a conversa tomava outro rumo, virava futebol,
gozação, qualquer coisa.
uma C-14 da polícia civil |
Obras gigantescas, um país que crescia para todos os lados, sob todos os aspectos. Essa era a tônica de tudo o que o governo permitia e fazia divulgar. E assim a vida ia seguindo, no faz de conta. Gente protestando, gente sumindo, o sumiço e a notícia do sumiço sumindo também. A insatisfação guardada e crescente num grande parcela do povo, mas tudo calado, confessado a portas muito bem fechadas, pois se poderia a qualquer momento, sem prévio aviso ser abduzido pelo SNI.
Generais
sucederam-se, as coisas foram se abrandando até a eleição indireta
para presidente, onde um civil voltaria novamente, ao poder, Tancredo
Neves, que em vez disso resolveu voltar para o invisível, deixando a
bola no pé do José Sarney.
Era interessante ver como a resistência fazia das suas para bater no regime, como quem não quer nada. Chico Buarque principalmente. Cada frase tinha um duplo sentido, parecia uma canção de amor e era um tapa na cara do regime, uns desaforos, uma provocação. Eu só consegui ouvir "pra não dizer que não falei das flores" na minha adolescência. Lembro que foi uma festa quando tocou em uma emissora de FM, inteirinha. "Geni e o Zepelim" também. Aqui e ali apareciam uns palavrões em algumas músicas, coisa de criança comparado com o que se ouve hoje.
E a TV?
Tudo
comportadinho, seguindo o figurino, não se fala de nada impróprio -
entenda-se, contra o governo. Se fizesse o contrário, tanto melhor.
Estão aí Globo e SBT para confirmar essa prática. A Globo tem 48
anos e o gole, como eu, 49. O jornal O Globo foi um
apoiador de peso dos militares. E lembro bem do Sílvio Santos
sempre falando favoravelmente dos generais, das obras do governo,
pondo filminhos sobre o que o General presidente
da vez fez naquela semana , sempre tem um oportunista, seja qual for
a oportunidade.
Essa
prosa toda para chegar ao que vimos ultimamente pelo país. A
garotada quebrando o pau -e quebrando é um verbo levado a sério,
palavra de ordem- por causa de vinte ou trinta centavos de aumento na tarifa de
ônibus, e depois por qualquer coisa, algumas vezes deu pra perceber
que era por nenhuma coisa, ou por uma coisa genérica como "pelos
meus direitos, não te interessa saber
quais são".
Não
é uma crítica, acho isso muito válido, é sinal de maturidade, de
crescimento, mesmo quando os tais oportunistas
se infiltram e tiram o seu proveito. Faço apenas
comparar com o que eram os protestos no período da ditadura, com era
difícil reclamar de alguma coisa, expressar uma ideia ou uma
contrariedade mais do que difícil, muito arriscado, podia custar a
vida.
E
essa garotada cresceu sem saber o que seus
pais, e mais provavelmente seus avós - já que tem muito pai e mãe
já crescido dentro da democracia- passavam,
o cala-boca constante que pairava no ar. E como se
pode falar sobre o que bem entender hoje, assumindo
claro, a responsabilidade sobre o que falou, mas tendo a LIBERDADE de
fazê-lo, com máscara, sem máscara.
Acho que falta apenas canalizar isso, educar-se politicamente, aprender que política não é algo para benefício próprio (isso é herança do regime, dos dedos-duros, dos caçadores de recompensa, que como no tempo da caça às bruxas, deduravam quem queriam tirar do caminho, bruxa ou não).
Descobrir
que o bem comum é algo legal. O que é bom pra mim e para os que
vivem no mesmo lugar que eu? Vou botar a boca no trombone por isso.
Entender que gabinete público não é lugar de troca favores, venda
de votos e apoios. Que a rua é onde a voz é mais ouvida, mas que o
que é destruído por vandalismo é igual a aceso de loucura dentro
da própria casa.
Saber
como demorou e foi difícil reconquistar essa possibilidade
de poder falar o que quiser e onde quiser deveria ser matéria
curricular no ensino oficial e nas
conversas entre pais e filhos, para aprendermos a valorizar e
aprimorar essa capacidade, e reivindicarmos a vida que nossos
impostos nos faz merecedores.
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